Quero a cabeça de João num prato – pediu a sobrinha a Herodes!

João Batista, o Percursor de Cristo, foi filho tardio do sacerdote Zacarias e de Isabel, prima da Virgem, tendo ambas engravidado quase ao mesmo tempo. Por isso, a iconografia da infância de Cristo o regista frequentemente em pueris brincadeiras com João menino que se faz acompanhar pelo cordeiro, prenunciando-lhe o sacrifício da paixão e morte ao designá-lo como “Agnus Dei” (cordeiro de Deus).

S. Joãozinho (S. João Batista menino) no deserto Francesco Bartolozzi ( a partir de Guercino), 1764 In: [82 prints, engraved by F. Bartolozzi and from the original drawings of Guercino in the collection of His Majesty]. London: [s.n.]Glasgow, University, Hunterian Museum & Art Gallery Collections

Fez-se pastor no deserto Hebrom, na Judeia, e juntou-se aos grupos de ascetas que aí viviam. Segundo S. Lucas, “no ano quinze do império de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos presidente da Judeia, e Herodes tetrarca da Galileia, e seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da província de Traconites, e Lisânias tetrarca de Abilene, sendo Anás e Caifás sumos-sacerdotes, veio no deserto a palavra de Deus a João, filho de Zacarias” (Lc 3, 1-3). Estas indicações permitem apontar o ano 28 da nossa era como data aproximada para o início da sua atividade de pregador, anunciando a próxima vinda do Messias. Na qualidade de Batista, introduziu o ritual do batismo, o qual se fixou posteriormente como cerimónia de iniciação no âmbito do Cristianismo, e batizou o próprio Cristo no rio Jordão.

Foi preso por ter denunciado, nas suas pregações, o adultério de Herodes Antipas com a cunhada Herodíade. Salomé, sobrinha do rei e filha de Herodíade, zangada por ele resistir à sua sedução, exigiu que o rei o mandasse matar, ao que este acedeu e lhe entregou a cabeça de João numa bandeja.

Desde o século V, a Igreja católica celebra a sua festa principal em comemoração do nascimento a 24 de junho, coincidindo com a data que na altura marcava o solstício de Verão, seis meses antes do Natal, dado que, segundo o relato neo-testamentário, seria este o tempo de gestação de Isabel na altura da Anunciação do anjo a Maria.

Theodore Clement Steele, 1883 – Pintura a óleo sobre tela Indianapolis, Morris-Butler House Museum

Os festejos populares associados à festa de S. João derivam, por conseguinte, das antigas celebrações pagãs do solstício de Verão associadas ao culto solar e a rituais com fogos cerimoniais.

A tradição principal nesta data consistia em acender a fogueira com o sentido arcaico de reter a força solar, que inicia o declínio nesta data, a que se associavam objetivos purificatórios. Durante a Idade Média, uma lenda cristianizava este costume pagão estabelecendo as suas origens num acordo feito entre as duas primas, segundo o qual Isabel, ao sentir que aproximar-se a sua hora, acenderia uma fogueira no alto de um monte, a fim de avisar Maria.

Em contraponto com a árvore de Natal, o tronco queimado na fogueira ou, por extensão, a própria fogueira tornou-se um dos emblemas da festa de São João. Atualmente proibidas por motivos de segurança, as fogueiras eram acesas nas ruas e praças, congregando todos os vizinhos à sua volta, enquanto os mais afoitos saltavam sobre o fogo. Tal como acontece na noite de Santo António, havia uma série de rituais propiciatórios ou divinatórios relacionados com o namoro e a vida amorosa associados ao salto da fogueira na noite de São João.

Associado à fogueira, desenvolveu-se o hábito de erguer mastros, ornamentados com ramos de verdura e festões de papel, de onde pendiam balões coloridos e lanternas, confirmando a importância do fogo nas festas do solstício de Verão.Porém, as tradições associadas às festas de São João não se esgotam no fogo.

À água das orvalhadas, ou a água que se bebe nas fontes ao início da madrugada antes do nascer do sol, também se associam poderes extraordinários de purificação e também de regeneração e proteção. Na cultura popular, estes poderes traduzem-se em beleza para os novos e vigor para os mais velhos, enquanto as raparigas procuram a graça de amores felizes. A reminiscência dos rituais pagãos ancestrais para assegurar a fertilidade e as boas colheitas passa pela associação de simbologias telúricas e propiciatórias do acasalamento e da fecundação.

O simbolismo inerente à água encontra-se também em certas plantas como o manjerico, a alcachofra ou o alho-porro.

A São João, tal como a Santo António, também é atribuído o epíteto de casamenteiro: a alcachofra, queimada à meia-noite na fogueira, ao mesmo tempo que se recita “Em louvor de São João, para ver se (o nome do pretendido) me quer bem ou não” e depois enterrada num vaso e deixada ao relento, promete o casamento com o rapaz mencionado se na manhã seguinte tiver reflorido. O alho-porro, de conotação fálica, faz igualmente parte de um jogo amoroso e de sedução ou de provocação alegre e desprendida, batendo com ele na cabeça de pessoas do outro sexo, entre graças mais ou menos brejeiras, constituindo o lado mais malicioso e popular das festas. Hoje em dia, o alho-porro tem vindo a ser substituído por martelinhos de plástico.

Cascata de São João 2012, Porto, S. João das Fontaínhas

O Porto, cujas celebrações por este dia já eram referidas por Fernão Lopes, fazendo remontar estas festas à época medieval, é um dos locais onde a tradição, ainda hoje, ganha maior relevo, com a criação das cascatas, cujo elemento principal é a água e a representação de João Batista no Jordão, o alho-porro, culminando, com o fogo de artificio que ilumina toda a cidade e o rio até à outra margem.

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Fonte das imagens:
Gravura: http://www.pierotrincia.it/IT/2476/San-Giovanni-Battista—Francesco-Bartolozzi—Guercino.html
Pintura: https://www.wikiart.org/en/t-c-steele/the-christ-child-and-the-infant-st-john-after-rubens-1883
Cascata: http://www.portopatrimoniomundial.com/s-joatildeo-no-porto.html

Post inicialmente publicado em 24/06/2014: https://amusearte.hypotheses.org/570

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Depois de tanto simbolismo e folia, talvez haja curiosidade para conhecer o relato evangélico desta figura do cristianismo. Veja o relato da morte e as circunstâncias em que foi decidida:

A morte de João Batista

Naquele tempo Herodes, que era o governador da Galileia, ouviu falar a respeito de Jesus. Então, disse aos seus empregados:

—Esse homem é João Batista! Ele ressuscitou dos mortos e é por isso que tem esse poder para fazer tais milagres.

(Herodes é quem tinha mandado prender João, amarrá-lo e colocá-lo na prisão. Ele tinha feito isto por causa de sua cunhada Herodias, esposa de seu irmão Filipe.) João tinha dito várias vezes a Herodes: “Você não pode viver com a esposa de seu irmão, pois isso é errado”. E embora Herodes quisesse matar João, ele tinha medo dos judeus, pois eles o consideravam profeta.  No dia do aniversário de Herodes, a filha de Herodias dançou para ele e para os seus convidados e ela agradou muito a Herodes. Herodes, então, lhe prometeu com juramento dar a ela qualquer coisa que pedisse. Mas a moça, persuadida pela sua mãe, lhe pediu:

—Eu quero que o senhor me dê a cabeça de João Batista num prato.

Herodes ficou muito triste, mas por causa do juramento que tinha feito diante de seus convidados, determinou que dessem à moça o que ela tinha pedido, e mandou que cortassem a cabeça de João Batista na prisão. A cabeça de João foi levada num prato e entregue à jovem que, por sua vez, a entregou à mãe.

Os discípulos de João vieram e, levando o corpo, o enterraram. Depois foram e contaram a Jesus o que tinha acontecido.

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(Pode conferir Marcosc 6.14-29 e Lucas 9.7-9)

Foto https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b2/La_decapitaci%C3%B3n_de_San_Juan_Bautista%2C_por_Caravaggio.jpeg

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