A lenda do Senhor de Matosinhos

Embora tipologicamente seja possível enquadrar esta escultura na transição do românico para o gótico, e datá-la entre os últimos anos do século XII e os primeiros do XIV, a origem lendária deste crucifixo está, no entanto, profundamente enraizada na comunidade e na tradição popular. Segundo esta, o autor da imagem é Nicodemos, personagem bíblica que, com a ajuda de José de Arimateia, retirou Cristo da cruz e o depositou no sepulcro. Impressionado com os acontecimentos que testemunhara, e porque era bastante dotado para o trabalho em madeira, Nicodemos resolve esculpir diversas imagens de Cristo crucificado, sendo auxiliado nesse seu trabalho pela circunstância de possuir o santo sudário – o tecido que, por ter envolvido o ensanguentado corpo de Cristo, reproduzia fielmente a imagem e as feições de Jesus.

Estas esculturas não permanecerão, contudo, muito tempo na sua posse. Sendo comprometedores indícios face às perseguições de que os cristãos são vítimas por parte dos judeus e romanos, Nicodemos lança as suas imagens às águas do Mediterrâneo.

A mais bela e perfeita de todas, a que melhor reproduzia a face de Cristo – por sinal a primeira que havia sido esculpida – depois de cruzado o estreito de Gibraltar e sulcado o Atlântico junto às costas portuguesas, acabou por ser depositada pelas águas na praia do Espinheiro, junto ao lugar de Matosinhos. Estávamos, ainda segundo a lenda, no dia 3 de maio do ano 124.

Recolhida a imagem na praia pela população, constatou-se, contudo, que lhe faltava um dos braços. No local não se encontrou o membro em falta e, por muitos braços que se tenham mandado fazer aos melhores artífices, nenhum encaixava de forma perfeita no ombro amputado. E assim, resignados, deixam ficar a imagem resguardada no Mosteiro de Bouças, localizado não muito longe do local do seu aparecimento.

Cinquenta anos depois, na praia, uma pobre mulher recolhe lenha. De regresso a casa observa, estupefacta, que um grande pedaço de madeira teima em, milagrosamente, saltar do fogo sempre que para ele era lançado. Milagre reforçado por ter sido uma jovem filha a indicar à mãe que a lenha em questão era o membro ausente na imagem do Senhor guardado no Mosteiro de Bouças. Facto que em si não encerraria nada de especial não fosse a circunstância de, até aquele momento, a miúda ter sido surda-muda de nascença…

Rapidamente aplicado no crucifixo, de imediato se constatou estar em presença do braço até aí extraviado. Começava assim a veneração desta imagem que, desde muito cedo, fez rumar a Bouças e depois a Matosinhos (após a sua transferência no século XVI para a nova igreja), inúmeros peregrinos e romeiros fascinados com a fama crescente dos seus milagres que, desde então, não deixaram de se multiplicar.

Independentemente da lenda, a referência histórica e documental mais antiga, até agora conhecida, à imagem e à devoção que lhe está associada data de 1342.

Aquela que é, provavelmente, a mais antiga imagem existente em Portugal de um Cristo crucificado, em madeira e em tamanho natural, datará de um período compreendido entre os finais do século XII e os inícios do XIV, na transição do românico para o gótico.

Embora apresente muitas características “arcaicas” e românicas (fraco realismo anatómico do corpo, posição rígida ao longo da cruz, preocupações pudicas dos panos da pureza que quase ocultam todo o corpo abaixo da cintura, mãos que não se crispam com dor…), o rosto, de maior cuidado artístico e expressando dor, aproximam-no mais do espírito e tradição góticas. A posição dos seus olhos (“O Senhor de Matosinhos é vesgo” – afirma a tradição popular) insere-se igualmente neste espírito, uma vez que nos encontramos perante um Cristo mediador que olha simultaneamente para o Pai e para os Homens. A longa cabeleira, a coroa de espinhos em prata e o rico resplendor são adereços introduzidos na imagem no século XVIII, bem ao gosto do barroco.

A Festa ao Senhor de Matosinhos celebra-se na terça-feira seguinte ao domingo do Espírito Santo (ou de Pentecostes), data móvel do calendário que ocorre sete semanas depois da Páscoa.

Nuno Monteiro, Teólogo

Texto originalmente publicado em www.religiolook.pt/fenobook