Pode ver este filme na NETFLIX mas também o pode descobrir na vida real – a história é descrita por Frank Dikotter, em livro. Já vimos o filme e também lemos o livro; para o ajudar veja o resumo e entretanto proteja a democracia

 

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“Quando se olha para a história humana, a liberdade não é a norma”, diz Andrew Sullivan, escritor e comentarista político, nos minutos iniciais do primeiro episódio da série documental da Netflix Como se Tornar um Tirano. Aos desavisados, segue o alerta: a nossa democracia aproxima-se cada vez mais da ruína, e esse é um movimento mundial.

A preocupação com o status da democracia ganhou força com a eleição de presidentes como Donald Trump, mas já era objecto de análise há muito tempo. Baseada no livro de 2011, The Dictator’s Handbook: Why Bad Behavior is Almost Always Good Politics, escritos pelos cientistas políticos Bruce Bueno de Mesquita e Alastair Smith, a série documental revisita governos ditatoriais do século XX e XXI na Europa, Ásia e África e sinaliza que movimentos ditatoriais não são uma história acabada.

Narrado pelo ator Peter Dinklage, que actua também como produtor de Como se Tornar um Tirano, o documentário apresenta por meio de seis episódios um manual de como se tornar um tirano.

O passo a passo para atingir o poder nos regimes autoritários e para a manutenção das ditaduras é exemplificado através de ações de figuras notórias pelo cerceamento de direitos, perseguição política e massacres de milhares de civis.

Adolf Hitler cercado por seus oficiais

Tome o poder

O primeiro episódio é centrado em Adolf Hitler, o artista fracassado que comandou multidões e se tornou um dos ditadores mais brutais da história. Ressentido com o resultado da Primeira Guerra Mundial, Hitler usou o seu carisma e oratória para canalizar a frustração, raiva e descontentamento de grande parte da população alemã ante a situação em que o país se encontrava no pós-guerra. A sua principal estratégia e que é comum a todos os regimes autoritários, é eleger o grande inimigo da nação, responsável por todo e qualquer revés. O seu breve, porém sangrento, regime só obteve sucesso graças a importantes aliados, e a série da Netflix destaca a poderosa máquina de propaganda nazista.

Acabe com os rivais

O ditador iraquiano Saddam Hussein e a violência com que ameaçou e aniquilou opositores é o tema do segundo episódio. Antes mesmo de tomar o poder, Hussein, filiado ao partido Ba’ath, participou da tentativa de assassinato de Abd Al-Karim Qasim, então primeiro ministro iraquiano. O seu descontentamento com membros do partido levou-o a forçar um líder político, mediante a tortura e ameaça, a confessar um plano conspiratório para derrubar o seu governo e a denunciar os supostos conspiradores, todos presentes numa sala do congresso. A série aborda outros episódios de violência cometidos por Saddam Hussein, que não poupou membros da própria família.

Reine pelo terror

O próximo “capítulo” do manual adverte para o que pode ser uma grande pedra no sapato dos ditadores: a população. Para governar, é melhor ser temido ou amado? Idi Amin Dada, ditador de Uganda, escolheu a primeira opção, é claro. A série documental aponta que, ao longo dos oito anos do governo de Idi Amin, cerca de 300 mil ugandenses foram mortos ou desapareceram. Para apaziguar o povo que sofria com o desemprego e a miséria, Idi Amin expulsou a comunidade asiática presente no país. Nem mesmo os nascidos em Uganda tiveram misericórdia. A expulsão fez com que a popularidade de Idi Amin aumentasse, no entanto, foi também o início da sua ruína.

Controle a verdade

“Factos alternativos”. O termo pode ser novo, mas a tática de manipular a verdade, um dos grandes inimigos dos ditadores, não é novidade. Joseph Stalin usou de propaganda, censura, combate à ciência e a rejeição de fatos que fossem contrários a sua ideologia, tudo para garantir que a sua versão da história fosse a oficial. Com a manipulação da verdade e da mente da população, fazendo as pessoas crerem que não podiam confiar em ninguém exceto no seu grande líder, Stalin realizou o seu expurgo. Conhecido como Grande Terror, a campanha sistemática stalinista de perseguição matou mais de 750 mil pessoas em dois anos.

Crie uma nova sociedade

Munidos do discurso de que tudo o que fazem é pelo bem na nação, aponta Como se Tornar um Tirano, ditadores almejam criar uma versão utópica do próprio país. O quinto episódio sugere que quem mais se empenhou nisso foi Muammar Gaddafi. O déspota líbio encontrou na carreira militar a saída para a pobreza e atingiu o poder aos 26 anos, por meio de um golpe de estado. Kaddafi proibiu sindicatos, ingestão de bebidas alcoólicas e até mesmo ações mundanas, como chamar um táxi. O tirano também escreveu o Livro Verde, leitura obrigatória nas escolas, cujo objetivo era reger a vida social, política e económica da Líbia. A utopia de Gaddafi, como se sabe, não se concretizou.

Governe para sempre

Desejo de todo ditador, manter o poder não é tarefa fácil. Todos os governos ditatoriais mencionados anteriormente morrem junto com os seus tiranos. Para concluir o seu manual da tirania, a série aborda a ditadura que sobreviveu ao tempo. A dinastia Kim da Coreia do Norte teve início com Kim Il-sung, conhecido como  Líder Eterno ou Grande Líder, o primeiro presidente do país após a sua libertação do Japão. Para manter a população sob seu controle, Kim Il-sung isolou a nação e criou a filosofia Juche, que significa autossuficiência, cuja ideia central é que a Coreia do Norte depende apenas da sua própria força e da orientação do seu líder.  Herdeiro “do trono”, o filho mais velho de Kim II-sung, Kim Jong-il não mediu esforços para fabricar narrativas que mantivessem a família no poder, lançando mão de sequestro e cárcere privado. Gerando medo internacional com a ameaça de uma guerra nuclear, Kim Jong-il e, agora seu sucessor, Kim Jong-un, mantém o país longe de interferência externa e com a família Kim no comando.

Breve passeio pela tirania

Possivelmente um dos objetivos da produção, Como se Tornar um Tirano é uma série documental que entretém.  Os episódios mesclam imagens de arquivo e sequências de animações que ilustram momentos notórios dos tiranos retratados e que procuram contribuir na construção do tom sombrio que uma narrativa que trata de regimes repressores pede. Ao mesmo tempo, concebem uma linguagem mais popular, capaz de atrair quem torce o nariz para documentários repletos de imagens em preto e branco. Esses elementos são costurados a entrevistas com historiadores, escritores e cientistas políticos, e revelam os instrumentos usados pelos ditadores para construir e manter seus regimes tirânicos.

A pouca complexidade revela o que Como se Tornar um Tirano realmente é: um apanhado geral sobre como se erguem governos ditatoriais. Divertida, é fácil acompanhar os seis episódios, cuja duração de apenas 30 minutos cada não permite um mergulho profundo nos meios usados para atingir o poder — como o apoio financeiro externo a muitas ditaduras e a cegueira voluntária de potências mundiais ante violações de direitos —, tampouco viabiliza o exame da vida dos ditadores apresentados.

Para aqueles que já estão a par dos métodos básicos usados para derrubar democracias — e que percebem atualmente movimentos rumo a esse caminho —, falta um aceno mais explícito ao momento em que vivemos.

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