Corrupção – crime compensa

O antigo primeiro-ministro José Sócrates viu ontem o tribunal de instrução a confirmar a acusação de seis crimes e a ilibá-lo de 25. A expectativa do ministério público não foi confirmada na maioria dos crimes apontados e por isso foi apresentado recurso para um tribunal superior que vai agora rever a decisão do júiz Ivo Rosa. E tudo pode voltar ao início.

Oficialmente ficamos a saber que o ex-primeiro-ministro, segundo o juíz, criou as condições para ser corropompido enquanto chefe do Governo. E que a partir desta circunstância arrecadou cerca de 34 milhões de euros a seu favor.

Estes factos são indesmentíveis, foram dados como provados. Contudo a hermenêutica jurídica, a aplicação das regras legais existentes, entendidas dentro dos prazos decorridos, levou o juiz a não considerar os factos e a sustentar a ineficácia da acusação na esmagadora maioria dos crimes cometidos.

Esta decisão de Ivo Rosa vai ser agora apreciada por um tribunal superior (o da Relação) e tudo indica que a valoração dos factos e o seu enquadramento será bastante diferente.

No final da sessão, José Sócrates voltou a sublinhar que se tratava de uma acusação de natureza política, maquinada até desde o início com a nomeação do primeiro juiz que tomou conta da ocorrência e o colocou na cadeia de Évora. E esclareceu que continuará a lutar pela “verdade” no sentido de ser ilibado.

Um caso político

As diligências que levaram à acusação a Sócrates – enquanto primeiro-ministro – são de facto políticas, como ele afirma, mas não só – são também objectivas e verificáveis na matéria apurada e que Ivo Rosa esclareceu ontem. Mas devemos avaliar as condições políticas à época e lembrar que o antigo chefe de Governo deslocado em Paris, para enriquecimento do seu curriculum académico, se preparava para regressar a Portugal disponível para enfrentar uma candidatura presidencial.

Esta possibilidade atrapalhava a caminhada tranquila de Marcelo Rebelo de Sousa que entretanto afastara da mesma corrida Rui Rio que, na mesma ocasião, sonhava com essa possibilidade, tendo entretanto desistido, por razões ainda hoje desconhecidas.

E foi neste ambiente que Sócrates aterrou em Lisboa – já sabedor do que lhe ia acontecer – tendo sido recebido por uma batalhão de jornalistas disponíveis para ali captarem um “exclusivo” montado por quem percebe da coisa. Com estas imagens “inéditas” e só facultadas aos repórteres do costume, Sócrates foi apresentado como um triunfo da justiça. E assim terminou a sua candidatura presidencial mesmo antes de começar. Na mouche!

Poderia até acreditar-se que em governos anteriores nada acontecera de semelhante – apesar de o descalabro do BES ter posto a descoberto a panela da sopa que a todos os governos serviu. Mas isso são outras histórias .

O descrédito

Felizmente não somos, os portugueses, especialistas em direito, mas como povo com mais de 900 anos temos a experiência acumulada de muita história, ou dito de outra maneira, conhecemos todas as maneiras de virar frangos, dispensando esclarecimentos ou mesmo acções de formação, agora na moda.

Por isso todos percebemos o que se passou ontem à tarde no tribunal – o crime compensa. Este sentimento que se entranha, entranha e fica a remoer marcará ainda mais a desconfiança no papel da lei numa sociedade democrática, além de corroer a confiança moral (para outros ética republicana) entre os cidadãos.

Portugal, ao ceder na luta contra a corrupção e ao continuar a impedir a criminalização do enriquecimento ilícito sobretudo da classe política, está a minar a qualidade da democracia e a entregar de “mão beijada” a liderança da narrativa política a partidos extremistas (de direita e de esquerda).

Os nossos filhos e nossos netos vão ter pela frente um horizonte democrático cheio de nuvens. Haja gente disponível para travar a luta que vem aí.